Violência no futebol, um retrato dos problemas da sociedade brasileira
As brigas de torcida e as atitudes violentas dos atletas dentro de campo evidenciam questões que vão além do futebol
Marcelo Iglesias
Milhares de pessoas nas arquibancadas, todos entoando o mesmo canto, muitas bandeiras, dinheiro gasto na compra de camisas do clube, na aquisição do ingresso para o jogo todo fim de semana... Essa dedicação incondicional ao time do coração é algo admirável para os amantes do futebol e do espetáculo proporcionado pelas torcidas. No entanto, o sentimento de amor maior pela equipe pode gerar um fator que infelizmente passeia pelos estádios nacionais e internacionais: a violência.
O problema torna-se mais grave quando o clima de tensão e ansiedade que permeia os arredores dos grandes clássicos invade as quatro linhas e os atletas deixam-se levar pelo que está sentindo a torcida. Nesse momento, sente-se a falta de preparo psicológico de alguns jogadores que deixam de dar o seu melhor para, ao invés disso, ofender juízes, torcedores e os seus colegas de profissão.
“As violências que acontecem dentro e fora de campo são situações bem diferentes. No entanto, existe um ponto que as une. Hoje, há no futebol um excessivo caráter competitivo, um 'só a vitória importa', um 'vencer a qualquer preço'. Isso pode ser interessante quando controlado, pois as equipes se dedicam mais, mas é prejudicial a partir do instante em que passa a existir a deslealdade entre os jogadores e a falta de profissionalismo para com os demais”, comentou Maurício Murad, sociólogo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Salgado de Oliveira (Universo).
Outro fator que é apontado como um dos disseminadores da violência dentro das quatro linhas é a exacerbada mercantilização que sofreu o futebol, no qual o único resultado que importa é a vitória. Por conta disso, alguns dirigentes e técnicos estimulam essa dedicação além da conta por parte dos atletas.
Um aspecto que é bem observado por Murad em seu livro, “A violência e o futebol – dos estudos clássicos aos dias de hoje”, é que há um baixo nível de consciência profissional entre os jogadores. Graças a isso, eles misturam a idéia de adversários com a de inimigos, e agem sem refletirem que, em breve, poderão ser companheiros de time daqueles que estão ofendendo no momento. Essa questão é mais evidente no Brasil do que na Europa, por exemplo. Lá, existe uma maior sindicalização dos profissionais e as punições são aplicadas sem dó.
“Mais do que isso, a atitude conivente dos árbitros agrava ainda mais a situação. Muitos deles fazem vista grossa para casos em que é feito um rodízio do jogador que faz a falta em um determinado atleta afim de evitar a expulsão, por exemplo”, lamentou Murad. “Dessa forma, fica mais valorizada a força e a agressividade do que o talento e a habilidade dos membros de cada time”, completou o sociólogo.
O futebol europeu, principalmente o de alguns países como a Inglaterra, é conhecido por ser, como diz-se na gíria dos boleiros, “mais pegado”. Isso, contudo, não quer dizer que ele seja mais violento, uma vez que nos campos de lá as punições acontecem de verdade. Um exemplo da mania dos jogadores brasileiros quererem burlar as regras é a característica típica do atual futebol nacional: o chamado “jogador cai-cai”, isto é, aquele que por conta de qualquer contato com o adversário se atira no chão tentando ludibriar o árbitro e cavar uma falta ou um pênalti.
Porém, dentro das quatro linhas, apesar dos problemas, a violência é algo possível de ser controlado. Fora das arenas, a história é diferente, e configura-se em uma problemática que afeta não só o período em que acontece o jogo, ou as horas antes e posteriores ao espetáculo. A violência nas torcidas é um fator que preocupa especialistas e que desnuda aspectos sociais, econômicos e políticos da realidade brasileira por meio da atitude de alguns daqueles que vão aos estádios.
“A identificação que existe com o clube, o sentimento de pertencer àquilo é um fator a ser levado em consideração”, disse Tânia Leandra Bandeira, bacharel em ciências do esporte, mestre em estudos neurológicos e psicológicos na educação motora e no esporte e doutoranda em educação física e sociedade pela Unicamp. “O torcedor é capaz de tudo, até mesmo de dar um abraço ou um beijo em um desconhecido que está ao seu lado quando o time marca um gol".
“Esse sentimento de pertencimento ligado a uma paixão exagerada já nasce com as pessoas. Por exemplo, em uma família em que o pai é corintiano, a chance do filho seguir a escolha do pai é muito grande”, continuou Tânia. “A identificação com um grupo, no caso, com um time, ainda que não se conheça a sede do clube ou o seu retrospecto de vitórias e derrotas, acaba sendo como o que acontece com a ‘escolha’ da religião. Por isso, também, acredita-se tanto na equipe e dá-se tanto a ela”.
Uma análise sociológica que cabe nessa discussão é o fato das pessoas realizarem alguns atos quando estão em público, em meio a uma multidão, que não os fariam se estivessem sozinhas. Isso porque, quando o torcedor vê-se no meio da torcida, ele perde a sua identidade, ele "esconde-se" na multidão. Além disso, pelo futebol ser uma atividade que mexe com paixão, age-se sem pensar, o que leva a ações pouco comuns no dia-a-dia.
Até mesmo a faixa etária de pessoas que geralmente estão envolvidas em confrontos entre torcidas e com a polícia é a mesma que está mais exposta aos problemas sociais do país como o desemprego, a crise econômica, o tráfico de drogas, etc. São jovens entre 14 e 20 anos de idade, que vêem no time de futebol a sua razão de vida e investem muito mais do que alguns reais por final de semana para assistirem aos jogos no estádio. Eles se dedicam e fazem de tudo pelo clube do coração.
"É importante que fique claro que, apesar da violência no futebol ser uma realidade dentro e fora do Brasil, isso acontece devido a ação de minorias. É essencial que se mudem os valores que existem em relação à competição esportiva”, alertou Murad. “Enquanto não houver essa mudança de mentalidade, tem de ser aplicadas medidas punitivas imediatas, apesar de notar-se a inoperância das forças policiais que fazem vistorias pouco detalhadas na entrada das arenas, que não têm controle sobre o cadastro das torcidas organizadas, e apesar dos processos penais referentes a atos de violência nos estádios não terem andamento”, completou.
A impunidade que se observa em casos graves registrados nas proximidades das arenas e dentro dos estádios é mais um reflexo do que acontece na sociedade. Para solucionar a situação no esporte que é tido como símbolo brasileiro seria interessante que fossem tomadas medidas em três escalas: de curto prazo (ações punitivas efetivas), de médio prazo (ações preventivas em dias de jogo) e de longo prazo (reeducação de torcedores, atletas, técnicos, dirigentes, árbitros, e demais envolvidos com o futebol).